A "convalidação" dos incentivos fiscais de ICMS

Embora bem menos famosa do que a primeira parte da sua notória sentença (“toda unanimidade é burra”), é na subsequente explicação que pode ser encontrado o verdadeiro ponto do célebre dramaturgo Nelson Rodrigues – e a sua dimensão mais profícua para o âmbito jurídico: “quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”.

De fato, há, hoje, razoável consenso quanto à importância da simples “problematização” de alguma premissa ou proposição para a dinâmica de um julgamento, sendo expressivo o papel desempenhado pelo dissenso, reconhecidamente um eficiente “contrapeso” a inclinações mais extremadas da maioria – o que não exclui, naturalmente, as (frequentes) situações em que a unanimidade é apenas um sintoma do alto grau de densidade jurídica dos argumentos acolhidos.

Mais difícil, no entanto, é cogitar desse aspecto positivo quando a “unanimidade” se forma, justamente, dentre aqueles que deveriam municiar os julgadores com (contra-)argumentos, como bem ilustra o caso da iniciativa que resultou na Lei Complementar 160/2017, a começar pela própria “etiqueta” nela colada sem maior questionamento, a qual obscurece a circunstância de que a ideia original de uma convalidação propriamente dita dos incentivos fiscais de ICMS concedidos sem o aval do CONFAZ foi descartada no âmbito do Senado Federal, tendo prevalecido o paliativo da mera remissão dos possíveis créditos tributários passíveis de recobrar sua exigibilidade em razão da inconstitucionalidade das exonerações.

E tão inédita como a própria iniciativa – sem paralelo conhecido, principalmente em termos de alcance – é a notável comunhão de interesses entre contribuintes e Fiscos Estaduais. Essa união entre “gregos e troianos” só não foi absoluta porque o então Governador do Amazonas colocou-a em xeque através da ADI 5.902/AM, prelúdio de disputa que, no entanto, parece sido ficado superado com a posterior ratificação do Convênio ICMS 190/2017 pelo mesmo Estado sob a nova gestão.

E não parece ser desprezível o peso dessa “unanimidade” para um outro fenômeno um tanto curioso: a tendência de enxergar a LC 160/2017 como uma espécie de  “fato consumado”, apesar de a PGR ter ofertado um alentado parecer no sentido da sua inconstitucionalidade

Um indicativo disso é a cada vez mais frequente extinção sem exame do mérito de ações diretas que questionavam incentivos fiscais “convalidados”, na contramão da diretriz sinalizada pelo próprio Tribunal Pleno. Veja-se a seguinte amostra:

Ministro(a)PosiçãoCaso(s)
Alexandre de Moraes“Perda do Objeto”ADI 4.534/GO e ADI 4.932/RJ (DJe 24/04/2019)
Cármen Lúcia“Perda do Objeto”ADI 4.834/RJ (DJe 27/11/2019) e ADI 4.933/RJ (DJe 28/11/2019)
Celso de Mello“Perda do Objeto”ADI 5.093/RJ e ADI 5.144/TO (DJe 05/05/2020)
Gilmar Mendes“Perda do Objeto”ADI 4.536/PE e ADI 5.146/SP (DJe 12/05/2020)
Marco Aurélio“Perda do Objeto”ADI 4.996/RJ e ADI 5.000/RJ (DJe 19/06/2020)
Roberto Barroso“Perda do Objeto”ADI 4.836/MS (DJe 16/10/2019)
Rosa WeberSobrestamentoADI 4.969/AC e ADI 5.227/CE (DJe 11/09/2019)

Sem discutir os fundamentos de ordem processual dessa linha – e a solitária posição da Min. Rosa Weber poderia ser um bom motivo para fazê-lo –, parece provável que mesmo esse aspecto secundário teria sido mais “problematizado” se a (in)constitucionalidade da LC 160/2017 fosse objeto de acesa controvérsia entre os mais diretamente interessados.

Certo, pelo menos essa consequência específica da LC 160/2017 poderia ser explicada, em certa medida, pela aparente “unanimidade” formada a seu respeito: se a iniciativa é encarada como uma espécie de “transação extrajudicial” ampla e abrangente, não deixa de compreensível a inclinação por “virar a página”.

Mas o que dizer quando o “armistício” é invocado em detrimento de quem não tomou parte nele? É o que tem acontecido com os Municípios, os quais, não obstante também sejam vítimas da chamada “guerra fiscal”, não mereceram qualquer referência durante as negociações entabuladas para encerrá-la. Explica-se:

A Tese 653/RG validou, em linha de princípio, o impacto dos incentivos fiscais sobre a parcela da receita de “imposto compartilhado” (p. ex., IPI e ICMS) atribuída a outros entes subnacionais, com uma única condição: a “regularidade” da exoneração concedida pelo titular da competência tributária. E tal regra encontra nos benefícios abrangidos pela LC 160/2017 sua mais expressiva exceção, afinal, a sua inconstitucionalidade é um pressuposto mesmo da iniciativa.

É aqui que exsurge a outra consequência do “fato consumado” da LC 160/2017: com frequência cada vez maior e simplicidade crescente, ela tem sido invocada como uma variável com o potencial de inverter o resultado da equação, através de um raciocínio acaciano: ultimada a “convalidação”, os incentivos fiscais contemplados tornaram-se regulares, neutralizando a exceção à Tese 653/STF e reativando a respectiva regra. Enfim, uma “borracha” tão eficiente quanto especiosa.

Não é esse o espaço adequado para repassar os argumentos da ADI 5.902/AM – e, sinceramente, nem é nosso propósito defender sua procedência. Mas não podemos deixar de compartilhar com o ilustrado leitor algumas perguntas um tanto retóricas que nos assaltam: seria a constitucionalidade da LC 160/2017 assim tão “óbvia”, a ponto de prescindir da mais sumária investigação? O que dizer, então, de um (suposto) efeito colateral que sequer foi cogitado na formatação do “armistício”, tratando-se, ao que tudo indica, de um espantoso “ponto cego”?

É, assim, difícil deixar de dar razão a Nelson Rodrigues quando o fator “unanimidade” passa a ter influência, mesmo velada ou inconsciente, sobre um debate que não envolve exclusivamente os próprios “transigentes” ou os beneficiários da LC 160/2017, pois, neste caso, seu único “mérito” seria cortar a “problematização” necessária ao devido amadurecimento do tema.






Fonte: jota.info