Reforma tributária e o novo lucro real

O convívio do contribuinte com o Fisco sempre foi conturbado. Um não vive sem o outro e não é de hoje que as normas jurídicas que disciplinam essa convivência protagonizam o debate público. Há um certo consenso no sentido de que as coisas não vão bem – e os números do contencioso tributário brasileiro são eloquentes –, mostrando-se necessário repensar os paradigmas e os arranjos institucionais que permeiam essa relação.

A voz uníssona de que algo precisa ser feito se dissipa no próximo passo, quando o assunto passa a ser o que deve ser feito. A forma, as medidas, os objetivos e os valores por trás das ideias reformistas parecem estar longe de encontrar um denominador comum.

Nesse contexto, parcela dos debates gravita em torno do perfil da tributação brasileira e, invariavelmente, acaba por apontar dedos para os impostos que incidem sobre o patrimônio e a renda. Em homenagem à vocação desta série, o presente artigo busca contribuir para o debate a partir de breves apontamentos acerca do inter-relacionamento entre o Direito Tributário e a Contabilidade e suas implicações no Imposto sobre a Renda pelo lucro real.

Longe de se propor uma solução final, o objetivo é analisar o panorama atual da tributação da renda das pessoas jurídicas a partir de quatro recortes: reforma tributária, renda, lucro real e contabilidade. A análise é oportuna pelo fato de que, em 2019, foram divulgadas algumas propostas do Governo Federal para revisitar o papel das demonstrações financeiras confeccionadas sob os novos padrões de contabilidade na apuração do Imposto sobre a Renda.

É pertinente, também, pela circunstância de que as empresas submetidas ao regime do lucro real representam “nada menos que 82% do volume de receitas contabilizadas pelo setor privado no Brasil”, o que denuncia a relevância desse regime de apuração na economia e demonstra que o tema merece atenção.

O relacionamento do Direito Tributário com a Contabilidade pode ocorrer de várias formas. Os modelos estrangeiros normalmente utilizados para ilustrar as possíveis alternativas de interlocução entre as disciplinas são o dos Estados Unidos e o da Alemanha. No regime americano, a tributação possui maior independência com relação às demonstrações financeiras.

No alemão, a contabilidade é emprestada para fins tributários com ajustes sutis. Ambos possuem virtudes, e o trade-off negativo comparece nos dois modelos, mas com diferentes feições. Conforme apontam alguns estudos, a aproximação do Direito Tributário e da Contabilidade é um fator indutor de práticas que reduzem o custo tributário em detrimento da qualidade e da precisão da informação contábil. O distanciamento do resultado contábil para fins fiscais, por outro lado, deixa de ser um desincentivo ao superdimensionamento dos resultados.

Vale relembrar que, no Brasil, a aproximação da Contabilidade com a tributação foi relativamente tímida. Antes da edição da Lei nº 11.638/2007, a contabilidade brasileira era dominada pela legislação tributária. A convergência das normas contábeis brasileiras com os padrões internacionais iniciou com esse marco legislativo, avançou com a edição da Lei nº 11.941/2009, que criou o Regime Tributário de Transição (RTT), e, no momento atual, está no estágio de amadurecimento da interpretação da Lei nº 12.973/2014, que trouxe adaptações da legislação tributária ao novo padrão contábil.

A visão estanque do patrimônio foi substituída por uma visão prospectiva. As principais quebras de paradigma dos padrões IFRS podem ser resumidas em preferência (i) por princípios a regras; (ii) pelo subjetivismo na aplicação ao conservadorismo; (iii) pela mensuração por estimativas ao método de custo.

Tudo isso, note-se, sem alterar o texto constitucional e os critérios previstos no artigo 43 do Código Tributário Nacional. É nessa ordem de ideias que cabe ao intérprete conciliar a regra-matriz de incidência tributária do Imposto sobre a Renda sob essa perspectiva de compreensão do patrimônio das pessoas jurídicas.

Os novos métodos de contabilização dos negócios experimentados pela entidade devem ser interpretados com os devidos temperamentos, haja vista as diferenças existentes sobre a forma de compreensão da norma tributária e da norma contábil.

Foi assim que a legislação instituidora do RTT estabeleceu que os lançamentos que traduzissem impactos na composição do lucro líquido “não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica” (artigo 16). A evolução desse regime veio com a edição da Lei nº 12.973/2014, que extinguiu o regime transitório e instituiu um modelo pautado por ajustes e adaptações para determinados registros contábeis.

Sucede que a perenidade desse modelo parece estar comprometida pela velocidade das atualizações contábeis e pela complexidade inerente à conciliação das disciplinas. A conformidade com as alterações contábeis almejada pelo artigo 58 da Lei nº 12.973/2014, que atribui à Secretaria da Receita Federal do Brasil competência para identificar as normas que implicam a alteração de métodos ou critérios contábeis – o “RTTzinho” –, é difícil de ser acompanhada pela agilidade legislativa, a despeito dos esforços da Receita Federal do Brasil.

Esse modelo inevitavelmente gera vácuos legislativos e, consequentemente, dissenções interpretativas. Tomando como verdadeira a premissa de que o legislador é incapaz de contemplar todas as nuances dos novos padrões contábeis, das três, uma: (i) ou criamos uma lógica própria para apuração dos tributos federais, algo próximo da ideia proposta pela Receita Federal, (ii) partimos para a concepção de uma nova norma geral de neutralidade (iii) ou deixamos tudo como está.

Analisando-se a primeira opção a partir da ideia anunciada pelo Governo Federal, a proposta é que o modelo atual, que parte do lucro líquido do exercício ajustado (artigo 6º, DL nº 1.598/1977), seja substituído por um resultado fiscal, cuja composição seria determinada por meio de “receitas fiscais” e “despesas fiscais” a partir do regime de competência.

A proposta enfatiza a existência de 202 adições e 144 exclusões e ressalta que não há criação de uma contabilidade fiscal no modelo proposto, mas a utilização de regras harmônicas. Nesse panorama, utilizar-se-iam contas não afetadas pelas novas normas contábeis. O objetivo seria o de pacificar a convivência de ambas as disciplinas.

Outra questão relevante a ser considerada é que o esboço da proposta apresentada pelo Governo menciona o plano de trabalho do IFRS antecipando as dificuldades que serão enfrentadas para acomodar os novos padrões contábeis à legislação tributária, com a projeção do aumento de ajustes ao lucro líquido.

Essa ideia é pautada pelo intuitivo prognóstico de que as mudanças das normas contábeis são constantes, complexas e de difícil acompanhamento. Em linhas gerais, trata-se de um modelo endereçado às dificuldades de conformação da lei com os padrões contábeis, o que não deixa de ser uma proposta tentadora.

Nessa primeira ideia, um aspecto a ser considerado é a separação das situações correlacionadas das relações causais. Por mais que o diagnóstico esteja correto – há, de fato, dificuldade em acompanhar e conciliar as alterações das normas contábeis –, não se pode descartar a hipótese de que o remédio proposto não atenda à causa do problema.

A complexidade dos IFRS tende a se acentuar, é verdade, mas não necessariamente porque a disciplina contábil esteja buscando maior assertividade na confecção das demonstrações financeiras ou por qualquer outro motivo, mas, talvez, pelo fato de que a sociedade e as relações econômicas estão se tornando mais complexas. Se essa for a causa – e é só uma hipótese –, então o remédio proposto não irá resolver a situação.

O modelo de regras harmônicas estará submetido aos mesmos problemas, podendo, inclusive, acarretar o agravamento da situação. Veja-se que até mesmo tributos de menor complexidade passam por dificuldades para acomodar as cadeias produtivas complexas da contemporaneidade.

A regra geral de neutralidade também é uma ideia a ser considerada. Afora os muitos desafios que seriam enfrentados nessa hipótese, um temperamento interessante seria explorar um novo paradigma de relacionamento das disciplinas em matéria tributária para conformar as adequações do IFRS.

Nada muito diferente do que já está previsto na lei, mas com maior intensidade do que a permissão atual de que algumas entidades possam “celebrar convênio com entidade que tenha por objeto o estudo e a divulgação de princípios, normas e padrões de contabilidade e de auditoria” (Comitê de Pronunciamentos Contábeis).

Encerrando o exercício de futurologia, talvez deixar as coisas como estão também não seja algo a se descartar. Ainda que o processo de aprendizado esteja em construção, é notório que já houve certo amadurecimento e que as empresas investiram significativamente em sistemas e treinamentos para que os novos padrões de contabilidade estivessem devidamente acomodados. A ruptura deve ser pensada com muita cautela.

Fazendo uma intersecção com as ideias recém-lançadas, talvez a simplificação – objetivo principal da alternativa proposta – seja alcançada não com o distanciamento das disciplinas, mas com sua aproximação. É possível que o crescimento vertiginoso de ajustes possa ser endereçado dessa forma. Para tanto, teríamos de alterar o ordenamento jurídico e aceitar o casamento das disciplinas sem preconceitos.

Se bem observarmos o pano de fundo das controvérsias levantadas nos textos desta série, perceberemos que existe muito a amadurecer no relacionamento da contabilidade para fins de tributação. Por mais que a comunicação das disciplinas não esteja em seu melhor momento, a decisão pelo divórcio não pode ignorar o histórico, os investimentos e os esforços empreendidos para se chegar até aqui.

O Direito Tributário e a Contabilidade devem sentar-se no divã e equacionar as vantagens e desvantagens de cada uma das alternativas, em busca do aprimoramento do relacionamento.

No entanto, qualquer modelo que se adote não pode esquecer o que nos ensinou Bulhões Pedreira, no sentido de que “a noção de renda que nos interessa não é a utilizada pela ciência econômica nem a que teoricamente seja a mais perfeita para as finanças públicas, mas a que se ajusta ao sistema tributário nacional definido na Constituição Federal em vigor”. O regime do lucro real é relevante para a arrecadação brasileira, e o assunto merece atenção.

A discussão se anuncia longa, cabendo a nós receber as propostas movidos pela dúvida e sem preconceitos.

Fonte: jota.info






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